Do Jardim Morada e Da Árvore Anfitriã
Daniel
Henrique M. Silva
Pelas vias tortuosas e cobertas
de pedras lisas ela caminhava, as libélulas, borboletas, bétulas e urtigas lhe
fazendo companhia; o céu azul acima indicava-lhe o caminho. Tudo era cheio de
vida e luz naquele jardim esquecido pela ganância da humanidade, lugar onde a
magia encontrava sua fonte e as criaturas podiam se achegar, repletas de
inspiração, para escrever suas poesias.
Os vagalumes vicejavam por entre
as roseiras gotejantes, e os beija-flores abanavam suas asas um sem-número de
vezes naquela explosão de cor e pólen, encontrando alimento e existência na
energia que os rodeava. O ar era perfumado e calmo, como o tempo que parece
congelado num sonho esquecido, onde as feições parecem borradas e as ações
fugidias, quando velhos conhecidos do passado retornam, bafejando palavras
sussurrantes, ininteligíveis.
Montanhas altas, de ferro e pico
nevado, circundavam aquele lugar atemporal, no qual as leis naturais não faziam
prisioneiros e onde a regra da morte encontrava sua exceção. A sempre-viva Mãe
distribuía seus grãos entre seus muitos filhos e esperava que eles crescessem e
se multiplicassem, numa sucessão infindável de reprodução.
Plantas. Animais. Humanos. Elfos.
E seres naturais. Ali, todos encontravam um último-primeiro lugar de paz.
O reino mítico. O jardim
encantado. O paraíso desvelado.
Aquele era o lugar no qual todos
se sentiam em casa. Pura
e genuinamente. E onde encontravam a parte de si pela qual haviam passado suas
vidas mortais inteiras procurando. O eu.
Safira, diamante, esmeralda e
ônix; de toda sorte de pedras preciosas os muitos caminhos que levavam àquele recôndito
eram cobertos. E era a partir do encanto pelo brilho que os filhos de todas as
eras se deslumbravam, e, cansados, começavam a trilhar a rota que as levaria rumo
ao seu primeiro encontro. Seu derradeiro altar e sacrifício: para entrar no
jardim, porém, era necessário que se deixasse tudo para trás, toda sua vida
pregressa, suas conquistas, seus valores, para finalmente, despido, encontrar o
Lugar Sacro, a Nascente Inextinguível, os Portões do Lar.
Maaylän, outrora Carmem, acabara
de chegar, e como era comum, abandonara tudo aquilo que recebera em seu velho
mundo – inclusive seu próprio nome. Ela se banqueteava com a visão de tudo o
que seus novos olhos, cor-de-chocolate-quente, podiam abarcar: as flores do
jardim, multicoloridas, que murmuravam coisas umas às outras, e se perdiam em
gracejos e risinhos; a pluralidade de dentes-de-leão sendo levadas pelo vento e
infestando o ar em sua dança de salão incessante; as dezenas de luzes
harmoniosas – espíritos de energia e pura luz – que passeavam calmamente por
entre as flores, despregando matizes de arco-íris e bolas-de-sabão na atmosfera
fresca do jardim; as ninfas despidas banhando nos regatos, com suas orelhas
pontudas e seus cabelos verdes-lilases-vermelhos-caramelos flutuando nas águas
frescas ao sabor das muitas marolas, acompanhadas por peixes de todas as cores que
exibiam corações, com o brilho das luzes de neon, pulsando através de escamas peroladas.
Por mais que Maaylän caminhasse,
ela parecia nunca encontrar o fim do Jardim. Todos os caminhos pareciam levar
para um único lugar: seu centro; e todos que cruzavam seus passos pareciam
muito felizes, como se nunca tivessem cogitado a possibilidade de deixar aquele
lugar, e como se, assim como ela, também o estivessem deslumbrando pela
primeira vez. Ali, homens, fadas e lobos dançavam cantilenas de roda, de mãos
dadas, escondendo-se por entre as árvores; casais apaixonados passeavam pela
vastidão inominável, recitando seu novo amor em sarais eternos de dedicação e
presteza; e humanos, outrora temerosos, acariciavam bestas-feras, híbridos de
águia e leão, serpente e albatroz, com toques de ternura.
Maaylän percebia a existência de
algo diferente no ar. Algo que, assim como todas as criaturas vivas em volta,
pulsava e consumia força – mas que, ao mesmo tempo, dava energia ao Todo. Estava
impregnado em tudo, e podia ser sentido de muitas formas; através dos sons das
cascatas borbulhantes; do perfume das diversas margaridas-do-brejo e dríades;
do sabor do ar que perpassava línguas e narinas; através, até mesmo, do
vislumbre de formas etéreas que flutuavam no tempo-espaço como dançarinos
feitos de véu acetinado; e do toque de cada forma de vida que era semelhante a
uma explosão de sentimentos tão ancestrais quanto à idade daquele lugar.
Mais velha, portanto, que a idade
da própria Terra.
E foi enquanto experimentava
aquelas sensações tão novas e ao mesmo tempo tão conhecidas, que Maaylän cruzou
seus olhos com os dele – verdes como as pedras limosas que brotam fundo na
terra, filhas do fogo e da matéria. Suas feições eram ao mesmo tempo selvagens
e gentis. Chifres de cervo polidos adornavam-lhe a fronte altiva.
Ele sorria para ela, e seu
sorriso era como o descortinar de uma janela que traz luz a uma sala vazia: trouxe
o toque sutil do calor e da vida ao seu coração adormecido.
Ela descobriu, pela primeira vez,
o significado de um sentimento que até anteriormente era apenas uma palavra, um
nome usado para expressar verdades que, em seu mundo, não passavam de mentiras,
ou partes de uma verdade ínfima, e que não era tão linda quanto aquilo que
agora ela experimentava.
Seu coração explodiu numa miríade
de cores, tomando a forma de um buquê de rosas ao desabrochar.
“Venha”, sussurrou ele por entre
os sicomoros e as faias. “Pegue minha mão.”
E ela o obedeceu – agarrando seus
dedos longos e sentindo uma parte de sua própria almessência tocando-lhe
através da pele do outro – afinal de contas, por que não o faria?
Os dois caminharam por entre as
árvores durante muito tempo, conversando sem proferir uma única palavra,
trocando juras de amor com olhares. Ludhavor era talentoso, pertencente a uma antiga
espécie de criaturas mágicas da natureza, e filho de todas as criaturas da
Terra. Tinha intimidade com tudo o que habitava aquele jardim e gostava de
entreter Maaylän fazendo as flores abrirem e fecharem suas pétalas, ressoando
finos toques de sino, e escrevendo versos lúdicos em caligrafia belíssima e
inclinada, nos caules esguios de tulipas coloridas, em nuvens repolhudas no
céu, em seus fios de cabelo cor-de-ouro.
Saeron, um enorme lobo albino de
olhos azuis como pingentes de gelo, era sua eterna companhia. Seguia o casal
abanando o rabo de um lado para o outro. Um guardião em terras protegidas.
O passar do tempo não era contado
com os ponteiros do relógio naquele jardim, uma vez que nada ali satisfazia as
leis do mundo carnal. Era possível que tivessem se passado dias, meses e anos
desde aquela primeira aproximação, e que tal caminhada tivesse se prolongando
por uma eternidade; mesmo assim Maaylän não percebia qualquer mudança no cruzar
das estações. Já era parte daquele lugar, parte de Ludhavor, seu amante.
E, antes que se desse conta de
que estavam seguindo um dos muitos caminhos que levavam ao centro do jardim,
Maaylän se viu diante de uma gigantesca árvore, cuja copadeira enchia toda a
área à volta, espalhando-se por cima de tudo e de todos como o céu tempestuoso
na forma de galhos nodosos e folhas crepitantes, uma coroa de graça; suas
gigantescas raízes percorriam todo o caminho à volta do tronco por dentro e
fora da terra, como um dragão marinho envolvido em um duelo.
Maaylän, Ludhavor e Saeron, assim
como dezenas de outras criaturas, insetos e flores curiosas, encaravam a grande
árvore, sua Anfitriã. E a Grande Árvore falou-lhes, sua copadeira reverberando.
Congratulou-os por terem chegado a tempo para a Grande Festa, e deu as
boas-vindas a todos e a cada um separadamente. E todos eram recém chegados,
pois naquele lugar não havia contagem de tempo, e tudo era muito velho e muito
novo de igual modo; tendo eles acabado de chegar ali e, mesmo assim, tendo
morado ali desde o princípio dos tempos e para sempre.
Sua voz era como o ranger de
galhos numa ventania, como o grito estridente de águias perscrutando as
montanhas no céu ventanoso, e como o gorgolejar de águas profundas e
incessantes, em lugares profundos, frios e esquecidos: mítica, profunda e
muito, muito velha. E todos se colocaram de joelhos, mas Anfitriã pediu para que
se levantassem, dizendo-lhes que era tempo de celebração, e que todos estavam
prontos para ela.
“Mas chorem por aqueles cujos
seus corações já não se lembram mais,
meus filhos pequeninos”, disse ela com sua voz de galhada, tronco e raiz – uma
voz que podia ser ouvida apenas pelos ouvidos do coração. “Aqueles que, embora
muito quisessem, nunca chegarão a esse lugar. Aqueles que se perderam, e estão
agora diante de outro jardim e outro Anfitrião”.
Ao som dessas palavras todos se
encheram de medo e trevas, mas as nesgas de escuridão e tristeza logo foram
varridas para longe de seus corações, visto que Anfitriã lhes convidou para dar
início ao Grande Banquete, e à Grande Celebração. E todos começaram a cantar, dançar
e se alegrar, pulando ao redor da Árvore Ancestral de mãos dadas, saudando sua
sabedoria milenar e sua persistência durante todas as eras da Existência.
E aquele foi um grande dia, no
qual homens, animais, plantas e criaturas de todas as lendas, desde o fauno das
florestas à fênix das longínquas pirâmides, se regozijaram e confraternizaram,
vivendo eternamente em
harmonia. E de fato esse dia ainda não se acabou e nunca
acabará, pois a derradeira festa das nações é aquela que durará para sempre.
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